Análise das cartas de Julio Bressane publicadas nos programas da Cinemateca do MAM Rio (1970-1971) (2025)

Já próximo à virada dos anos 1960 para a década seguinte, um conjunto de filmes que adota uma postura de maior despojamento técnico e uma série de contestações no plano narrativo começa a tomar forma e provoca inúmeras polêmicas no cinema brasileiro. Será o caso de, mais tarde, compreendê-lo sob diversos termos, nem todos favoráveis, chegando a uma espécie de síntese no título atribuído à primeira prospecção acadêmica sobre o assunto, Cinema marginal: a representação em seu limite (RAMOS, 1987). É, sem dúvida, a partir de limites, compreendendo a transgressão obrigatória destes – sejam eles estéticos, representativos, comportamentais, políticos -, que se fez notar a soma de títulos.

No primeiro intento de reunir esses exemplares em uma sala de projeção, listando o amplo leque de transgressões que formulam ou potencializam, chega-se a uma mostra que traz em si um título aparentemente receoso sobre como marcá-los: Novos rumos do cinema brasileiro. As exibições, promovidas pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, ocorrem entre novembro de 1970 e janeiro de 1971, tendo entre os curadores o crítico José Carlos Avellar (DAHL, 1971).

Apontar aquele repertório emergente como um “novo rumo” não implica necessariamente algo depreciativo, tal como se dará em outras designações – udigrudi; cinema do lixo; e a própria ideia de marginal, que será mais tarde reavaliada por Fernão Pessoa Ramos (2018), ao gerar dentro dela uma nova terminologia, a de “marginal maduro”. Para aquela pioneira iniciativa, alguns “novos rumos” se projetam então sobre a questão da novidade, sem perder o parentesco com o cinema moderno e com aquele que, localmente, se ocupou de torná-lo uma realidade, o Cinema Novo.

Mas é o próprio Avellar quem irá rechaçar qualquer dúvida em relação à terminologia a ser adotada na revisão que escreve sobre a mostra para o Jornal do Brasil. Assume o rótulo “cinema marginal” como uma tendência inevitável:

Falar de um cinema marginal no Brasil traz o perigo habitual de limitar as coisas dandolhes um nome, que logo funciona com um sentido pejorativo. (...) Mas é necessário correr o perigo para que se tente chegar à compreensão de uma movimentação que já deu um número considerável de filmes1.

E também toma como tônica em sua análise o viés da representação, considerando o paralelo relacional entre indivíduo/personagem e a sociedade, em situações como a impotência e o distúrbio da plateia. A matéria é ilustrada por Bang bang (1970), de Andrea Tonacci, filme que ganha um diferencial sobre os outros na revisão de Avellar, pois este se encaminharia para o cinema em si e para autores como Welles e Godard, suprimindo a “amargura da auto-agressão” dos demais e provocando uma “maior abertura”2. Outro parecer, já bem mais crítico, impulsionado também pela Novos rumos e redigido por Gustavo Dahl, discorre sobre a exasperação da “atitude autoral” contida naquelas produções, situada em um “ponto limite” que cristalizava a ausência de contato com o espectador (DAHL, 1971, p. 34). Nesse relato, o rótulo “marginal” também é incorporado, mas cercado de ironias. Em tom igualmente crítico e repleto de insultos, Glauber Rocha (1970) também irá tecer uma série de comentários a partir da mostra em O Pasquim3.

É bem razoável considerar que a mostra Novos rumos do cinema brasileiro tenha contribuído significativamente para a consolidação do termo “cinema marginal”, atribuído a esse grupo de filmes – ainda que ele tenha se dado anteriormente4. Um bom exemplo para avalizar esse comentário está no par de artigos redigidos por Flávio Moreira da Costa para a revista Filme Cultura. No primeiro, veiculado na edição de setembro/outubro de 1970 (portanto, às vésperas da mostra), ele abre com a perspectiva de que não existiria ainda um “cinema marginal”, mas “filmes marginais”, sem um “programa político ou estético” (COSTA, 1970, p. 28-29). A opção pela designação underground é então adotada pelo autor. Já no segundo, publicado em fevereiro de 1971 (após o encerramento do evento e motivado por ele), a identificação é empregada de forma afirmativa ao longo de todo o texto, chegando-se ao seguinte parecer: “O cinema marginal é uma suposição, e sua própria existência é mais importante, em termos de vitalidade para o cinema brasileiro, do que uma suposta e ideal confirmação na prática (prêmios em festivais, conquista do mercado, etc.)” (COSTA, 1971, p. 61, grifos do autor). Ainda nessa reflexão, Flávio Moreira atribui ao Cinema Marginal um papel de continuidade do Cinema Novo (algo que se prefigura na expressão “novos rumos”), sendo objetivo ao apontá-lo como uma consequência do processo de industrialização. Percebe-se, portanto, a importância da mostra Novos rumos na formulação conceitual de um Cinema Marginal em sua contemporaneidade; seja enquanto algo indefensável ou como uma expressão legítima. O que aqueles autores escreveram a partir das exibições na Cinemateca reverberará em reflexões posteriores, conferindo grande relevância à empreitada.

Entre as produções arroladas pela Novos rumos do cinema brasileiro, um marco no que diz respeito à reunião de uma filmografia e à percepção da coesão entre suas partes constituintes, encontram-se duas películas de Julio Bressane. Elas são oriundas de sua produtora, a Belair Filmes, fundada em parceria com Rogério Sganzerla e Helena Ignez: Barão Olavo, o horrível e A família do barulho, ambas de 1970. Por ocasião dessas exibições, são publicadas nos programas da Cinemateca do MAM Rio duas cartas do diretor, escritas em Londres. Este trabalho pretende realizar uma análise desse material, tomando como base uma tentativa de compreensão não do “cinema marginal”, como propôs Avellar (1971) em seu artigo sobre a Novos rumos, mas da Belair em específico. Parte-se da hipótese de que tais textos registram de forma veemente tanto as motivações que alicerçaram o trabalho da produtora quanto os fatores que levaram à sua dissolução. Nesse quadro, tópicos referentes à representação perdem força, relativizando generalizações como as presentes no texto de Avellar, que, por sua vez, compreende a possibilidade de exceções (vide o exemplo de Bang bang, por ele sublinhado). Tampouco é interesse deste trabalho empreender uma reflexão comparativa entre os filmes da Belair e os demais que compõem a Novos rumos e que poderão ser agrupadas sob a etiqueta de “cinema marginal”. A contextualização se dá de forma a compreender o momento da publicação dessas cartas, atestando não apenas a relevância de sua aparição, mas o possível impacto do material em uma ocasião na qual se pretendia discutir caminhos do cinema moderno no Brasil.

Dessa maneira, a pesquisa está estruturada da seguinte forma: um inciso inicial sobre a Belair, colocando em relevo a ênfase técnica do objeto e sua maneira de encaminhar a crítica que estabelece a respeito dos rumos industrializantes do cinema brasileiro; em seguida, será formulada uma apresentação sobre as cartas, não do ponto de vista do conteúdo, mas sobre os materiais referentes a elas – que não se restringem apenas aos programas da Cinemateca do MAM Rio; por fim, são realizadas duas análises, uma referente a cada texto – ambos inteiramente reproduzidos.

Belair

A Belair Filmes foi uma produtora cinematográfica que esteve na ativa durante o primeiro semestre de 1970. Fruto da parceria entre Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Helena Ignez, realizou longas-metragens provocadores, sempre com a última no elenco. Os títulos são: Copacabana mon amour, Sem essa, Aranha, Carnaval na lama (todos rodados por Sganzerla); A família do barulho, Barão Olavo, o horrível e Cuidado madame (filmados por Bressane); além de um suposto trabalho coletivo, contendo imagens de bastidores, intitulado A Miss e o Dinossauro, dado como perdido.

Seu início remonta para um encontro entre Bressane e Sganzerla durante o 5° Festival de Brasília (1969), no qual concorriam, respectivamente, com O anjo nasceu e A mulher de todos. Nesse evento, a afinidade entre os dois faz aflorar uma linha de raciocínio que entende o cinema brasileiro como uma expressão baseada em filmes de menor orçamento e aparência desleixada, algo incongruente à meta do melhor acabamento que passa a nortear a última safra do Cinema Novo e seu ingresso às cores e melhores condições de produção, às vésperas da criação da Embrafilme.

Tecnicamente falando, o preto e branco de O anjo nasceu de certo soou mais transgressor, no sentido em que sublinha uma textura com maior granulação, obtida a partir da ampliação da bitola 16 mm para o 35 mm. Ousadia que legitima um discurso que se desdobra em dois sentidos imediatos: filmes economicamente mais baratos e esteticamente mais sujos. A mulher de todos também é em preto e branco, mas a audácia se dá quase como um complemento à granulação excessiva de Bressane: Sganzerla colore o filme na finalização, a partir de um processo rudimentar, de viragem, que destoa consideravelmente do preciosismo pela cor investido pelos cineastas modernos e das tecnologias contemporâneas, como a fabricação industrial de películas em cores.

À parte questões sentimentais, sempre implicadas nos relatos de seus personagens sobre aquele momento de “afecção mútua” (BRESSANE, 2005, p. 33), o que se pode constatar enquanto elemento de ligação entre o par de longas-metragens apresentados em Brasília é a grande relevância do lado técnico. É tecnicamente justificável o encontro entre O anjo nasceu e A mulher de todos, ambos em vias de asseverar um programa de subprodução legitimado por escolhas práticas visualmente discrepantes do programa oficial. Uma suposta identificação entre os dois trabalhos parece ganhar menos sustentação em perspectivas mais convencionais – sobretudo estilísticas. Se havia um ponto de ligação artístico entre os dois naquele momento, ele se dá na convergência sobre o lado técnico e nas expectativas estimadas nos resultados ali obtidos. Nessa medida, a transgressão estaria menos na construção de personagens e desenvolvimentos de enredos – também bastante transgressores – do que nas formas de comentar sobre os processos, sobre o lado prático, que inclui também outras ferramentas, como a utilização desigual do zoom e a descontinuidade narrativa. Enquanto os produtos cinematográficos em sintonia com as leis do mercado ocultam as técnicas neles empregados (qualidade naturalista), o que se vê no par de filmes em pauta é um direcionamento oposto, de sublinhar os procedimentos, de fazê-los constar na imagem. Em suma: uma apologia à matéria.

O que se dará na filmografia da Belair será um aprofundamento sobre o lado técnico, uma aposta na expressão materialista que agora vem dotada de consciência crítica sobre os desdobramentos produtivos do Cinema Novo – algo ainda não muito claro ou incipiente no par de longas-metragens que concorria em Brasília. Os títulos da produtora são uma farta resposta à proposição industrial articulada pelos cinemanovistas, qualidade que poderia não ser tão evidente ao longo do ano anterior. Pelo menos não de forma crítica e tampouco conjunta: Bressane e Sganzerla estavam afastados enquanto cada um executava seus experimentos, no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.

Ao apontar que teria rodado o par de obras simultâneas em 16 mm (Matou a família e foi ao cinema e O anjo nasceu) logo após o visionamento de O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) em Cannes5, o cineasta certamente mirava para uma ruptura. Já com o filme pronto e dotado de uma profunda solidão enquanto declaração artística, fora do esquadro, é o caso de pensar em uma vontade de alinhamento, o que ocorrerá na identificação com Sganzerla. A consistência crítica passa a ganhar uma dimensão mais robusta a partir da reunião entre os dois e de um suposto elo que, de fato, engendra um posicionamento baseado em enfrentamentos que são, majoritariamente, técnicos.

No caso da Belair, não se trataria muito de manifestar a desaprovação sobre um filme específico e de forma descoordenada, solitária, como parece ter se dado para Bressane em 1969, mas de uma filosofia de produção, tendência que implica no enfraquecimento do produto-filme: “Não era o problema de se ter os filmes, era o problema de se ter aquela percepção de cinema. Não eram propriamente os filmes que deviam ser paradigmáticos, não. Os filmes eram um experimento de uma percepção do cinema, de uma maneira de sentir o cinema”6. Tal comentário não pareceria tão maturado quando do surto individual de Bressa-ne em 1969, pelo menos não se pensado a partir do viés materialista. É, contudo, difícil não compreendê-lo enquanto um passo inicial, ainda com pouca consciência sobre o tamanho e a intensidade da fissura validada mais tarde.

Não se pode pensar na Belair como uma investida alheia ao agravo. E que este se faz presente a partir da combinação de ruídos que estabelece um projeto técnico, fazendo a práxis sobressair. Tal medida discorre sobre contendas nitidamente contemporâneas: a industrialização, a internacionalização e um conservadorismo artístico proveniente de ambições mercadológicas que recairão sobre o cinema moderno brasileiro a partir da safra de 1969.

Sobre o preto e branco, Bressane inaugura os trabalhos na Belair com a bitola 35 mm, mas fazendo-a aparentar como 16 mm, como se vê em A família do barulho. A fotografia irregular vai soar como um elemento de decifração. Trabalha uma visibilidade que oscila, entregando formas e proporções de maneira desigual, provocando um achatamento que compreende todo um projeto de dessublimação. O artifício parece ainda mais exagerado na telecinagem que resultará no lançamento do filme em VHS, em dezembro de 1988, junto a outros títulos da filmografia inicial de Bressane. À parte a definição precária da imagem eletrônica, tem-se a impressão de que aquela telecinagem teria ocorrido a partir de uma “luz única”, isto é, marcação de luz que prevê a mesma configuração para todos os planos. Tal recurso não se aplica à confecção da cópia final ou ao processo de telecinagem/digitalização para lançamentos domésticos. Compreende-se que cada plano teria sua própria especificidade fotográfica (diferenças de luz, ambiente, cores, contrastes, etc.), gerando um ajuste singular para cada trecho. A “luz única” era, contudo, empregada para gerar o “copião”, cópia de trabalho utilizada para funções inferiores, relacionadas a estágios de preparação do material (visionamento preliminar, processo de montagem, conformação para o corte no negativo, testes de legendagem e trucagens, etc.). Se ao verter A família do barulho para o formato VHS, de resolução já bem inferior ao processo fotoquímico, Bressane teria proposto uma “luz única”, tal artifício só teria a confirmar a falta de apreço pelo bom produto. Inicialmente, teria dado à bitola 35 mm (formato comercial) a aparência do 16 mm (formato amador, experimental ou doméstico). Posteriormente, tornou o agravo ainda maior ao recusar um equilíbrio fotográfico no processo de telecinagem, acentuando a impressão de “copião” e se distanciando de um padrão mercadológico.

Em Barão Olavo, o horrível, o diretor investe nas cores e faz um trabalho visualmente bem acabado, mas narrativamente problemático, transferindo a irregularidade técnica visual para os padrões narrativos na diegese. Tal proposta de torcer aspectos na exposição dos acontecimentos, contudo, já parece adequada em A família do barulho e mesmo em sua produção rodada em 1969. Em uma revisão sobre a obra, Bressane se refere a Barão Olavo como um trabalho que teria sido deixado inacabado7, apesar de possuir cópia e até mesmo créditos que, curiosamente, nada informam sobre a montagem, mas põem em relevo o tipo de negativo utilizado – outra forma de dar destaque ao lado técnico, aqui, sem dúvida, acentuando a policromia como um título que ostenta seu ingresso em uma discussão industrial, a do filme colorido.

Cuidado madame é o único trabalho do diretor rodado em 16 mm pela Belair. É também em cores e possui som direto. Produzir um longa-metragem em 16 mm não seria uma novidade para Bressane. O curioso é que tal filme, finalizado já no exterior, no laboratório francês Éclair, nunca fora ampliado para o formato 35 mm. Tal dado permite apontá-lo como um experimento que talvez jamais tenha de fato ambicionado a distribuição comercial – que só se daria na bitola maior. No documentário Belair (2009), dirigido por Bruno Safadi e Noa Bressane, o diretor comenta que Cuidado madame e Sem essa, Aranha, filmado por Sganzerla também em 16 mm, encerrariam o expediente, mas teriam sido feitos “só pra gente”, corroborando para o argumento acima.

O suposto fim da Belair se distancia do repertório de questionamentos artísticos e se encaminha para os contornos políticos da época. Assim narra Bressane, ainda em Belair (2009):

Uma noite estava eu na sala de mixagem... Chegou lá o meu pai e me disse que havia uma denúncia muito grave contra mim e contra o Rogério também, nesses filmes que nós estávamos fazendo. E que eu devia ir com ele na casa de um general, que era o general Sílvio Frota, comandante do 1º Exército naquele momento, que ele queria falar comigo. Fui lá, era em frente ao Maracanã, uma casa que tinha ali, cor de rosa, do exército. Me recebeu de chambre e me disse que havia um relatório contra mim — eu não vi o relatório, mas ele me mostrou, assim na mão — e que ligava esses filmes, a Belair, ou pelos menos esses filmes que estavam interditados inclusive Matou a família, sobretudo, a um plano de subversão nacional. “Esses filmes tinham dinheiro do terrorismo, Marighela”, uma coisa sem fundamento nenhum. Era um cinema simpático a isso, sem dúvida8.

Na saída para o exterior, Cuidado madame e Sem essa, Aranha são levados sem finalização. Não se pode afirmar que houve alguma montagem sobre o material no exterior, mas ao menos a produção de cópias em 16 mm de ambos foi efetuada por lá9. Enquanto isso, outros trabalhos ficarão por aqui: as cópias de A família do barulho e Barão Olavo, exibidas na Cinemateca do MAM Rio no período em que Bressane morava em Londres.

Tendo discorrido breve e parcialmente sobre a Belair, ressaltando aspectos de parte da filmografia referente à fração de Bressane, realçando dados técnicos e a propensão para destacar a fatura prática, é preciso ver de que forma tudo isso aparece nas cartas. Estas são publicadas nos programas da Cinemateca do MAM Rio entre novembro de 1970 e janeiro de 1971 e acompanham as primeiras projeções públicas de longas-metragens finalizados da companhia produtora.

As cartas

A primeira carta redigida por Bressane aparece no programa de nº 255, publicado em 13 de novembro de 1970, acompanhando o anúncio da projeção de Barão Olavo, o horrível. Faz parte da quarta sessão da mostra Novos rumos do cinema brasileiro. No programa, lê-se o título “Uma carta de Julio Bressane” logo após a ficha técnica do filme. Segue-se o texto e, ao final, o local e data da redação: “Londres, setembro de 1970”. Abaixo, consta o anúncio para a sessão de Meteorango Kid, o herói intergaláctico (1969), de André Luiz de Oliveira, no dia seguinte.

A segunda carta consta no programa nº 25, de 29 de janeiro de 1971, que relaciona a projeção de A família do barulho e do curta-metragem Meio-dia (1970), de Helena Solberg. Desta vez, não há título ou referência ao conteúdo. O texto começa após as fichas dos dois filmes. Ao final, há assinatura, local e data: “Londres, outubro 1970”. Seguem-se, então, dois informes. O primeiro comunica que A família do barulho substituiria Betty Bomba, a exibicionista (nome inicial de Carnaval na lama), título anteriormente divulgado na programação. O motivo: a cópia não teria ficado pronta a tempo para a exibição. Informa ao final que Betty Bomba seria projetado em uma terceira parte da mostra, prevista para a primeira quinzena de março de 1971. Tal terceira parte, como se sabe, não ocorreu. Não foi possível localizar qualquer referência sobre essa terceira parcela da Novos rumos em material algum para além do programa nº 25. É importante observar também que não há exemplares desse programa depositado no acervo da Cinemateca, ao qual pertence. Foi possível encontrar uma fotocópia do nº 25 na pasta referente a Julio Bressane, depositada no acervo da Funarte (cuja origem remete aos arquivos da Embrafilme).

Uma pesquisa na pasta referente a Julio Bressane no acervo da Cinemateca do MAM Rio, composta por matérias, entrevistas e documentos de procedência textual, localizou fotocópias que aparentam ser os originais das cartas publicadas nos programas da Cinemateca. Cada qual possui duas páginas. Tais fotocópias trazem algumas complicações. De imediato, nota-se que os textos foram editados e não inteiramente publicados nos documentos tornados públicos pela Cinemateca. E ainda, eles aparecem misturados: a metade de um, em uma página, é sucedida pela metade de outro, na seguinte.

As fotocópias grampeadas no arquivo resultam em um primeiro exemplar intitulado “S.O.S. Brazil” e outro chamado “O inimigo é outro?”. Entre os dois, há ainda um documento inédito, datado de 3 de outubro de 1970, bem breve e repleto de citações. “S.O.S. Brazil” começa com a frase: “Não se pode prever a arte de uma sociedade sem classes baseado em modelos e critérios de uma sociedade dividida em classes”. No final da primeira página, lê-se: “De qualquer maneira querer colocar esse movimento [Cinema Novo] como de vanguarda me parece um caso típico de ‘kitsch’”. Essa primeira parte será reproduzida no programa nº 25, mas sem o título “S.O.S. Brazil”. Na segunda página das fotocópias, o texto prossegue da seguinte forma: “Matou a família e foi ao cinema está interditado pela censura porque dizem ser a cópia da má qualidade”10. Já no programa nº 25, a carta segue assim: “O surgimento da Belair em determinado momento do cinema brasileiro (...) TRANS/FORMOU o panorama”. A segunda página das fotocópias de “S.O.S. Brazil” dará continuidade ao texto do programa nº 255, que, por sua vez, abre com a primeira página da fotocópia de “O inimigo é outro?”.

Dessa confusão, duas possibilidades podem ser aventadas. Ou as cartas foram corretamente publicadas nos programas e alguém posteriormente misturou as páginas e as grampeou de forma equivocada, ou houve enganos na hora de transpor o texto, publicando as partes trocadas. A hipótese de que as cartas foram corretamente publicadas, apesar de algumas omissões, ganha maior sustentação, pois fragmentos de uma delas apareceram recentemente em uma publicação. Trata-se do catálogo da mostra Cinema de invenção — Elyseu Visconti Cavalleiro (2021), produzido em São Paulo pela Via Cultural – Instituto de Pesquisa e Ação pela Cultura. Nele, há trechos de “O inimigo é outro?” – cita-se o título, o que já não consta no programa da Cinemateca – que abrangem páginas diferentes, confirmando a ordem do que fora divulgado anteriormente no Rio de Janeiro. Há ainda uma informação inédita no catálogo, a de que a carta teria sido enviada por Bressane a Elyseu11. O dado não consta em nenhuma outra fonte, mas é plenamente factível, já que este era próximo aos cineastas da Belair e ficou com a incumbência de realizar tarefas para o andamento da cópia de Carnaval na lama, como se vê em uma referência epistolar do mesmo período12. O cenário principal de Barão Olavo foi a casa onde funcionou o ateliê de seu avô, o pintor Eliseu Visconti. Em comunicação com a presidente da Via Cultural, Anna Lúcia Marcondes, foi informado que o material original de “O inimigo é outro?”, assim como outros documentos de Elyseu enviados pelo cineasta ainda em vida, ficaram depositados no Instituto até a presente data. Não foi possível, entretanto, ter acesso a esse arquivo – seria a carta originalmente escrita à mão por Bressane ou datilografada em máquina, tal como consta no arquivo da Cinemateca?

Colocados esses dados, nas próximas páginas seguirá uma análise das cartas, tomando como referência a ordem do que fora publicado nos programas, mas utilizando os textos contidos nas fotocópias depositadas no acervo da Cinemateca do MAM Rio. Assume-se, então, que o que fora impresso e tornado público em 1970 e 1971 não corresponderia à íntegra do material original, mas sim a uma edição. Dessa forma, interessa aqui analisar esses documentos como eles teriam supostamente se dado, o que implica a decisão de assumir que houve manipulação no conteúdo das páginas, mas não na ordem.

Análise da primeira carta

Datado de setembro de 1970, o texto “O inimigo é outro?” é publicado sem título no programa de n° 255 da Cinemateca do MAM Rio, constando em seu lugar o informe “Uma carta de Julio Bressane”. Nele, o alvo do ataque é o projeto modernista industrializante. Nesse caso, faz todo o sentido destacar a Belair já de entrada. O argumento parte da empreitada como um todo, colocando em relevo algumas das ousadias fundamentais do projeto: a produção seriada e em cores, atributos de uma proposta pretensamente industrial, contrastada ao momento cinemanovista. Em relação ao título, a interrogação sobre o inimigo sugere que ele pode ser ninguém menos que a própria classe cinematográfica. Não seria, portanto, outro, externo ao cinema, mas alguém de dentro – preferencialmente, o Cinema Novo. O texto se inicia da seguinte forma:

Alô alô boçalidade. Fiz no Brasil 6 filmes de longa metragem sendo que 5 deles foram rodados entre setembro de 69 e maio de 70. A Belair (minha ex-produtora) entre janeiro e maio de 70 fez 7 longa metragens (5 em cor).

A família do barulho; Bety Bomba a exibicionista; Barão Olavo, o horrível; Copacabana desvairada13; Cuidado madame; Sem essa, Aranha; A miss e o dinossauro – os ímpares são meus os pares do Rogério e o último é Belair – com exceção dos dois primeiros todos são em cor.

Mas ainda é matusalém quem reina. 16-70-35-8-3D etc. o problema não está na bitola. Quando fiz Matou a família e foi ao cinema e O anjo nasceu em 16 mm P&B ampliado o resultado foi genial cavernoso delinquente. Os lordes perguntaram sobre os “filminhos”. Aqui é necessário uma explicação: “filminhos” era o que eu fazia porque “obras” era o que se guardava debaixo de latas de detefon. Hoje meus filmes são muitos e em cor. E agora?14

No último trecho, a discussão predominante está na bitola. A ampliação de 16 mm para 35 mm tornou as imagens mais granuladas, como já comentado. O resultado “genial cavernoso delinquente” dá o tom do processo: “filminhos” em oposição às “obras” – sérias, artísticas, refinadas, produzidas por uma aristocracia cultural. Há ainda a frase “mas ainda é matusalém quem reina”, que pode soar em parte como referência a uma crítica sobre Matou a família e foi ao cinema, escrita por Ely Azeredo e publicada no Jornal do Brasil. O alvo seria, notoriamente, o conservadorismo. O paralelo já estaria contemplado de forma imediata na figura deste que foi o mais longevo ser retratado pela Bíblia, o matusalém. Mas o texto de Azeredo, extremamente hostil a Bressane e reagindo primeiramente a palavras do cineasta que coloraram em xeque o estado da crítica, abarca o seguinte trecho: “Na fase pré-natal de Carlitos, Charles Chaplin e os matusaléns da Keystone15 posaram para um filme inteiro entre o almoço e o jantar. Julio Bressane ainda vai chegar lá, se não chover às 4h35m” (grifo do autor)16. No relato, o autor desaprova a ligeireza do diretor embasado em dados técnicos, como a falta de sincronia entre som e imagem, e cópias que “lembram os tempos em que a UCB e o laboratório adjacente massacravam sistematicamente os filmes brasileiros da engrenagem ‘oito por um’”17. Remete à rapidez do carioca a um arcaico quadro do cinema industrial americano, desbancando-a. Para ele, trata-se de “uma pressa que lesa o espectador e atropela as justas pretensões do cinema jovem” (grifos do autor)18. Ou seja, invalida ainda a permanência de Bressane em uma via moderna, atrelada ao jeune cinéma. Azeredo se coloca no papel de um velho (tinha à época por volta de 40 anos, 16 a mais que o diretor de Matou a família) e desqualifica o desleixo encampado pelo cineasta. Seu posicionamento poderia refletir a figura do matusalém que, é claro, não estaria restrito apenas a ele, mas a um conservadorismo que seria, primeiramente, de ordem técnica.

Se o elemento aqui empregado para aproximar crítica e carta pode ser frágil, restrito apenas a uma palavra, “matusalém”, as visões de mundo elencadas entre os dois documentos não deixam de exprimir o debate com precisão: do elogio eloquente ao lado técnico associado a uma promiscuidade reveladora, até sua reprovação veemente. De toda forma, Bressane se referirá aos críticos (“de direita”) como “colonizadores” em sua carta, como se verá mais abaixo. O exemplo trazido aqui certamente se adequa ao alvo. Azeredo ainda esboça um julgamento pouco entusiasmado sobre o filme de Sganzerla no mesmo texto em que contesta Bressane: “A barbárie exibicionista de A mulher de todos é pouco mais que uma brincadeira, muito menos do que uma charge” (grifo do autor)19. No entanto, não é tão incisivo ao citar O dragão da maldade contra o santo guerreiro e chega, por fim, a elogiar o Leon Hirszman de A falecida (1965) no referido material. Sua opção por estabelecer a primazia artística do Cinema Novo o qualifica à figura do matusalém, no papel de um dos “críticos imbecis de direita delirante”, como descreve Bressane logo adiante.

Nas próximas linhas, é o Cinema Novo e sua guinada para a industrialização que assumem o protagonismo das críticas, agora direcionadas diretamente para o público-alvo:

Colonizados e reacionários. O cinema é uma coisa que vocês nem desconfiam, na engrossada veio tudo à tona não se engana mais. Os sabidos armaram a “jogada industrial” se uniram ao que há de pior, é claro, e conseguiram fazer os piores filmes brasileiros de todos os tempos.

Estão nadando no vinagre e vão fazer a Brazilian Film Inc. em defesa e nome da nossa kultura. Atenção: mixagem alta não salva burrice.

Os colonizadores (no caso críticos imbecis de direita delirante) impuseram seu gosto ditaram o ton e todos engoliram sempre sérios, serão uma das últimas etapas iniciadas pelas missões Panana Fruit-Baby Johnson- Cadillac- Gulf Oil-Escova Tek-Gillete Azul-Colgate-Brazilian Film Inc. A jogada é pequena: sair da kitinete para a cobertura cafajeste da Vieira Souto é muito pequeno20.

A “jogada industrial” levaria os filmes a um estágio de deterioração artística, tecnicamente articulada na ideia de “nadar no vinagre” (fala-se em “síndrome do vinagre” para apontar a degradação de películas e efeitos como encolhimento, abaulamento, descoloração, entre outros). A indústria americana seria o modelo e o caminho para manifestar um ciclo de aculturação, uma velha novidade. O comentário “Atenção: mixagem alta não salva burrice” tornará a aparecer em uma polêmica vindoura: Ivan Cardoso se servirá dele para nomear um texto utilizado para atacar um filme produzido pelos cinemanovistas e seu diretor, Capitão Bandeira contra o Doutor Moura Brasil (1971), de Antonio Calmon. Não é o caso de se deter nesse episódio por estas páginas, mas ele retoma o espírito belicoso (e o mesmo alvo) da carta de Bressane. Seu esforço vai, no final das contas, novamente estabelecer a Belair como uma produtora de vanguarda, opositiva à “jogada industrial” e suas derivações. Na carta de Bressane, porém, vê-se novamente a reprovação a partir de um dado técnico: a mixagem em sons elevados não conseguiria, por fim, sustentar más escolhas (artísticas, sobretudo).

A série de marcas e produtos de origem estrangeira encerra esse trecho, que discorre sobre um processo de aculturação com a chancela da crítica, visando uma ascensão social, e não artística. O objetivo seria então ir para uma cobertura na Vieira Souto, um dos metros quadrados mais caros do Rio de Janeiro, a partir de um cinema comercial que estaria no diapasão do produto estrangeiro.

Prossegue o texto:

Matou a família e foi ao cinema está interditado pela censura porque dizem ser a cópia de má qualidade. A qualidade da cópia é a melhor que pode ser obtida no Brasil, o problema está na ampliação, o filme está interditado (não tem boa qualidade oficial) exatamente pelo que ele tem de mais moderno requintado e experimental: a fotografia pré-histórica, as deformações provocadoras21.

Nesse debate – que, no final das contas, discorre sobre uma arte de vanguarda no contexto brasileiro –, Matou a família figura como o exemplar condenado à sua própria extravagância. Mas esta não estaria em personagens ou cenas transgressoras, alvos comuns dos censores e da moral dos bons costumes. A censura, segundo Bressane, teria se dado justamente pelo lado técnico22. A grande questão condenatória seria a ampliação, recurso, por sua vez, responsável pela experimentação, pela “fotografia pré-histórica”, pelas “deformações provocadoras”. Ou seja, nada de transgressor no corpo do filme – que traz sequências ousadas para a época, de encenações de tortura a cenas de homossexualidade. O pecado foi mesmo tê-lo feito daquele jeito, com qualidade duvidosa no nível da textura da imagem.

São limitados por isso não percebem a necessidade “da invenção, da surpresa, da nova perspectiva, de uma nova escala, do acabamento de carrosserie”.

Por um lado a pressão insuportável da censura oficial por outro a burrice cinemanovista. Longe da taba de papelão vejo nitidamente o campo de guerra-battle-field-blood-filth. É triste.

O boicote tinha que haver mas é sempre lamentável a evidência do erro histórico da moral classe média “do sistema da babilônia do garçon de costeletas”, São sérios são mesquinhos são culturais. O que é preciso é fazer um grande concerto. Não há este papo de o inimigo é outro. Como? Sem essa.

A paisagem realmente apodrece querido Oswald você tinha razão. Mas já estou em outra.

S.O.S. BRAZIL INTERNATIONAL.

Londres setembro de 197023.

Neste último trecho de “O inimigo é outro?”, Oswald de Andrade adentra no repertório de forma a contextualizar historicamente o apreço pela técnica e o repúdio pela cópia. O “acabamento de carrosserie”, extraído do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, nada mais é do que um elogio ao lado técnico da obra (SCHWARTZ, 2008, p. 169), mas também, e sobretudo, ao lado tecnológico (NUNES, 1978), algo valorizado por Bressane em Matou a família nas linhas acima. A ampliação e sua granulação característica seriam o acabamento em uma nova perspectiva, de invenção, avesso ao detalhe naturalista, que acabaria por denunciar um inacabamento – algo que irá encontrar correspondência na narrativa, no longo e persistente plano final que culmina com o esvaziamento diegético em O anjo nasceu, filme-irmão de Matou a família.

Nesse trecho, o diretor também relaciona aqueles que teriam sido os algozes que inviabilizaram seu trabalho: a clausura política (na figura da “censura oficial”) e a falta de visão artística do Cinema Novo. O direcionamento, por fim, consolida a interdependência entre modernistas e adeptos da marginalia; ou entre os apoiadores da superprodução e os provocadores da subprodução. Culpabilizar cinemanovistas por um alegado boicote (uma censura artística, para além da oficial) é, mais uma vez, remeter o projeto da Belair para o debate modernista. Não haveria outra motivação no campo do cinema para o nascimento da produtora e o reconhecimento de sua posterior derrota.

Sobre o boicote, Bressane ainda cita de forma inexata linhas de “O escaravelho de ouro”, poema de Oswald de Andrade dedicado à filha em seu último casamento. Ele o fez possivelmente a partir de um ensaio de Haroldo de Campos (publicado pela primeira vez em 1966), que estabelece: “[Oswald de Andrade] faz o seu memorial de poeta ‘compromissado com a liberdade’, meditando sobre a marginalização do artista num mundo dominado por valorações e esquemas dogmáticos (‘Ninguém quis comprar o poeta’; ‘Venceu o sistema de Babilônia/ E o garção de costeleta’)” (CAMPOS, 1974, p. 56). Já neste século, Roberto Schwarz (2003, p. 11) é mais preciso ao definir o “sistema de Babilônia” como o capitalismo e o “garção de costeleta” como a estética kitsch.

É, portanto, intenção dessas linhas promover uma defesa do lado primitivo de uma arte cinematográfica brasileira24. Seguindo uma herança abertamente oswaldiana, o que implica reivindicar um gesto que é contrário ao propósito naturalista, colocará na linha de frente uma perspectiva materialista, listando técnicas e tecnologias responsáveis pelo agravamento.

Análise da segunda carta

O primeiro parágrafo de “S.O.S. Brazil”, título que também é omitido no programa de nº 25 da Cinemateca do MAM Rio, se serve de uma discussão política que parece pouco se relacionar tanto com Matou a família e foi ao cinema quanto com a Belair. Ela vem embalada pela leitura de Trotski, cuja primeira tradução de Literatura e revolução havia sido publicada no Brasil no ano anterior:

Não se pode prever a arte de uma sociedade sem classes baseado em modelos e critérios de uma sociedade dividia em classes. A manifestação de vanguarda que coloca em questão – para depois eliminar – todos os critérios de ARTE (a palavra já é terrível) feita em uma sociedade de classes é por si só revolucionária. Só os fariseus atacam estas manifestações vanguardistas em defesa de um “patrimônio cultural” mal selecionado sincronicamente e “cultural” de uma cultura de classes. A arte livre de uma sociedade sem classes ainda está porvir com a revolução proletária. A partir desta revolução e da consolidação de uma sociedade sem classes é que poderemos falar uma arte participante em relação ao desenvolvimento do HOMEM. Esta arte revolucionária (em si própria, como o verbo) apenas terá como base de referência o melhor de alguns poucos exemplos do legado da arte burguesa patriarcal e não este idiota ponto de referência (hoje já é clichê) da nossa “CULTURA”25.

O discurso da revolução do proletariado e da luta de classes passa longe das prioridades do cineasta e da Belair como um todo. Trotski (1980, p. 169) escreve, sobre cultura e arte proletária, que “não se pode criar uma cultura de classe à revelia da classe”; e que o socialismo seria responsável por minar características de classe, restando à ditadura do proletariado “aplainar o caminho e colocar as fundações de uma sociedade sem classe e de uma cultura baseada na solidariedade”. Não haveria nada ali no trabalho de Bressane à época que pudesse harmonizar aos preceitos trotskistas em torno do proletário e de uma sociedade sem classes. A título de exemplo, Cuidado madame – filme que sistematiza ocorrências que problematizam hierarquias sociais em âmbito doméstico por meio de um trauma repetitivo que resvala para o cômico – perde de vista um dado cultural de primeira ordem: o empregado não tem consciência de classe. É pitoresco e desmobilizado. A ênfase está na performance. O histrionismo abafa qualquer intenção mais contundente de discorrer sobre diferenças de classes – qualidade comum às chanchadas, formato que está no âmago de uma disputa maior sobre a valorização (e resgate) de um Brasil arcaico e ingênuo no modernismo a partir de meados dos anos 1960.

O trecho da carta de Bressane de inspiração trotskista vai inspirar Avellar a propor um paralelo com o lema do personagem da estreia de Sganzerla, remetendo o debate, a princípio sobre classes, à polêmica do subdesenvolvimento no cinema dos diretores da mostra Novos rumos:

Quando (...) Julio Bressane afirma que “a manifestação de vanguarda que coloca em questão – para depois eliminar – todos os critérios da arte feita em uma sociedade de classes é por si só revolucionária”, está a rigor retomando as palavras do Bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”. Parece certo que o filme de Sganzerla deu o sinal de partida e que os filmes de Bressane logo seguiram o caminho. Mas é verdade também que um filme muito pouco conhecido e realizado à mesma época do Bandido apresentava um personagem que possuía todos os traços comuns aos dos filmes de hoje: Jardim de guerra, de Neville Duarte de Almeida26.

Já o elogio à vanguarda, nos termos de Bressane, estabelece um ponto de demarcação a ser trabalhado logo em seguida, assumindo no âmbito do cinema moderno brasileiro uma posição de superioridade sobre os títulos e cineastas cinemanovistas. Continua a carta:

O chamado “patrimônio cultural” (no caso do exemplo brasileiro este “patrimônio” que não existe deixará como referência alguns pouquíssimos pontos) será finalmente banido em função de uma criação livre e nova. Revolucionária em toda sua acepção.

Posso até acreditar que o cinema novo brasileiro tenha cumprido sua finalidade histórica (no caso lamentável, suas bases e exemplos eram colhidos do que havia de pior no pomar brasileiro) mas o golpe de 64 serviu para embutir estes realizadores e não fazê-los saltar em busca da criação revolucionária que no caso se fazia indispensável. O desafio era um bom exemplo.

De qualquer maneira querer colocar este movimento como de vanguarda me parece um caso típico de “kitsch”27.

Nesse desenvolvimento, o argumento sobre a revolução proletária fica para trás. A ideia de patrimônio cultural, atrelada à fundação de uma cultura, estaria designada para a filmografia do Cinema Novo, que, por sua vez, se manteria fora do escopo da revolução. Seria o caso de se deter nela como um típico exemplo de arte para uma sociedade dividida em classes. Atingidos pelo golpe militar, os cineastas modernos teriam voltado sua arte para o contexto político e perdido a chance de apostar em uma “criação livre e nova”. O filme de Paulo Cesar Saraceni, O desafio (1965), ocuparia aí um lugar emblemático: enquanto reação imediata ao golpe, não teria se desvencilhado artisticamente dele. É o que aponta Pereira (1985, p. 52) a partir do protagonista, Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho): “Marcelo foi o primeiro personagem cinematográfico a encarnar um estado de espírito que tomou conta da maioria dos intelectuais no imediato pós-golpe. Embora obra de ficção, O desafio tinha como pano de fundo uma experiência traumática recente”. Mesmo no exterior, entre críticos franceses contemporâneos, o filme de Saraceni será avaliado como “porta-bandeira da luta contra a ditadura” (FIGUEIROA, 2004, p. 169). Logo, ele é objetivamente político de uma forma que foge a qualquer perspectiva assumida pelos filmes da Belair. Estes, ainda que toquem em matérias de interesse político-social – como a ambientação cênica em comunidades com populares, menções ao contexto proibitivo e citações em torno da desigualdade social e da exploração de oprimidos – dificilmente poderão ser vistos como um panfleto. O Cinema Novo, talvez em sua politização contundente, ou no que Sganzerla denominou de “baixa densidade criativa” (IGNEZ; DRUMOND, 2005, p. 67), não poderia assumir um papel de vanguarda senão em uma conotação sensacionalista ou (involuntariamente) kitsch, como o “garção de costeleta”. Em sua tentativa de prospectar sobre os resultados da Novos rumos, Avellar chega ainda a propor que as “verdadeiras raízes (do cinema marginal) devem ser procuradas na situação brasileira a partir de [19]64”28 – tendo no Marcelo de O desafio a anunciação do comportamento que irá caracterizar os filmes em revisão. Os argumentos de Bressane vão em parte confirmar o dado, mas em outra linha de raciocínio, fora do viés representacional.

Ao final do texto, a Belair finalmente reaparece. Surge como um evento contra as forças dominantes, tomando aí a cor como ferramenta legitimadora para a reprovação.

O surgimento da Belair em determinado momento do cinema brasileiro (quando a tendência era a dinamitação da criação em nome de uma indústria e da repetição exaustiva de maus exemplos do passado dessa vez, parece incrível, limitados pela má utilização da cor)

TRANS/FORMOU o panorama

Além de criar uma dinâmica totalmente nova (chegamos a fazer 6 (seis) longa metragens em 4 (quatro) meses, é fantástico) a Belair virou naquele momento para o lado enterrado do cinema brasileiro ou seja o cinema livre, político (numa acepção total deste significado) e tendo como base o que havia de melhor entre nós: de Trotsky29 a Oswald de Andrade da precariedade limitativa a improvisação criadora.

Estes filmes ainda não surgiram para o público nem para seus críticos que possivelmente por serem sectários e dogmáticos não saberão vê-los livremente. Não sabendo ver cinema e preferindo fazer bobagens perderão a chance de assistir os filmes mais interessantes deste planeta. Pior para vocês caretas30.

Nesse trecho aparecem, lado a lado, as duas influências maiores que embasam a afronta: Oswald de Andrade e Leon Trotski. E é sobre elas que deverá ser pensada a ideia de um “cinema livre, político (numa acepção total deste significado)”. A totalidade de um cinema político é algo que poderá ser visto com reservas no programa da Belair, sobretudo se pensado no contexto do pós-AI-5, no truculento governo Médici e suas medidas repressivas, silenciadoras. Um outro cinema político, pouco afeito a méritos cinematográficos em si, mas voltado a reflexões externas à arte como um todo, não parece tão consistente nas prioridades elencadas por Bressane. É possível que uma “acepção total” de político, nos termos do cineasta, implique no relaxamento do que deva ou não ser considerado aprioristicamente como político, redimindo omissões de pautas que poderiam ser tidas como prioritárias para alguns setores. Pode-se, contudo, vislumbrar uma tentativa de esticar a acepção do significado de político ao final do texto, que termina com uma citação entre aspas retirada da introdução de Literatura e revolução. Este trecho, possivelmente por motivações políticas, foi suprimido do programa nº 25:

“O regime proletário é temporário e transitório. A significação e grandeza da revolução proletária residem no fato de que esta planta os alicerces de uma cultura que não será de classes mas pela primeira vez verdadeiramente humana”. Trotsky.

Londres outubro de 197031.

Importante destacar que essa passagem, no livro, vem sucedida da seguinte frase: “É fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte proletárias. Estas últimas jamais existirão” (TROTSKI, 1980, p. 25). Nessa discussão, é justo perguntar: na ótica de Bressane, a Belair e seus filmes estariam representando alguma reflexão sobre cultura e arte proletárias? Se sim, como exatamente isso se daria? Em sua reiterada oposição (sobretudo técnica-tecnológica, das ampliações à utilização supostamente correta da cor) à industrialização do Cinema Novo, como enxergar a empreitada como um todo enquanto algo minimamente viável para fora de um circuito mais fechado?

O aporte a Trostki, ao fim, parece soar como uma vontade irrisória de se projetar em um debate ao qual a Belair não teria muito fôlego, tanto em suas intenções artísticas quanto em suas lamentações sobre os rumos estéticos do Cinema Novo: a politização contundente sobre um postulado marxista. No contexto regional, a ditadura militar tampouco parece ter sido o alvo prioritário da Belair (especialmente pela parte analisada) – apesar das recorrentes investidas a um “momento de anti-Brasil”32. O par de textos investigado por aqui exprime esse dado com clareza. Mesmo no contexto proibitivo, a ligação cinema-repressão se daria de forma apolítica: segundo Bressane, a censura teria minado Matou a família pela qualidade da cópia, não por mensagens subversivas, como exposto acima. De toda forma, é difícil enxergar a Belair e seu trabalho como desconectados de uma cultura e arte burguesas33, expressões que o texto, por meio de Trotski, pretendem criticar. A contextualização da Belair em um cinema de viés marxista é algo problemático, insustentável.

Há ainda traços de Trotski pela parte de Sganzerla. Um outro trecho de Literatura e revolução é lido em cena por Helena Ignez em Sem essa, Aranha. No entanto, o conteúdo reproduzido parece mais pertencer a uma discussão blasfematória do que a algo relacionado à política de classes: “Não se sabe ao certo se ele crê ou não. Seu Deus, repentinamente, escarra sangue, enquanto a Virgem se entrega a certo húngaro por algumas peças de metal amarelo” (TROTSKI, 1980, p. 63). Porém, é em um texto redigido em 1970, mas só posteriormente tornado público34, que Sganzerla irá reproduzir com maior consistência política excertos do Trotski de Literatura e revolução. Nele, assim como na escrita de Bressane aqui analisada, Oswald de Andrade também é colocado lado a lado para deflagrar um libelo contra o Cinema Novo e contra um projeto de Brasil que se distinguirá fatalmente da vertente mario-andradiana (representada pelos cinemanovistas). Mas a discussão é muito mais contundente nesse documento de Sganzerla, que pode servir para contextualizar melhor a mesma pauta que motiva Bressane no material visado por este trabalho. É o conceito de cultura que vai provocar a contestação, sobrando algumas menções igualmente genéricas para o contexto militar proibitivo do Brasil. Para o Sganzerla que está interessado em debater a questão da cultura, como o Bressane destas páginas, a discussão política está na arte e na influência internacionalista como um descaminho para o modernismo brasileiro:

Ao contrário do que pensam os piedosos culturalistas, não existe obra política reacionária na forma e progressista na mensagem. Na verdade, o equívoco não é um equívoco, mas uma contrafação ideológica a oferecer prestígio, dinheiro e má consciência aos responsável não só pela “cultura nacional brasileira”, mas pela infra-estrutura intelectual que oprime o colonizado (IGNEZ; DRUMOND, 2005, p. 65).

Essas linhas aparentemente se reportam aos mesmos que, segundo Bressane, teriam optado por “sair da kitinete para a cobertura cafajeste da Vieira Souto”. No entanto, é o comentário sobre uma discrepância entre forma e conteúdo, contemplado nessa mesma passagem, que afirma a primazia pela via estética – o que, no caso do que vem se argumentando por aqui, implica a adoção consciente de uma verve materialista, a do “acabamento de carros-serie” oswaldiano, aludido por Bressane. Para tal orientação, essas palavras de Fidel Castro (incorporadas por Sganzerla em seu texto, mas pertencentes à apresentação de Moniz Bandeira no livro de Trotski, convenientemente intitulada “O marxismo e a questão cultural”) parecerão mais do que adequadas: “Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político, porque o mau poema político desserve a revolução” (BANDEIRA, 1980, p. 17). Mas, afinal, é igualmente justo perguntar: de que revolução estamos falando?

Conclusão

O par de cartas reproduzido e analisado nestas páginas, publicado ao longo da mostra Novos rumos do cinema brasileiro em programas da Cinemateca do MAM Rio, elucida de forma contundente as reivindicações prioritárias colocadas em prática pela Belair. Estas podem ser resumidas como um questionamento crítico sobre a industrialização do cinema moderno brasileiro e sobre seus produtos (o objeto filme). Para este último, torna-se imprescindível o elogio à fatura técnica – que poderá ser compreendido como uma vontade de vanguarda, amparada mais em processos e procedimentos do que em resultados fechados, desvinculados da perspectiva naturalista. Ou seja, uma apologia à abertura do filme como uma aposta para o futuro, um acúmulo de incertezas sobre uma tradição errante que irá se apoiar na convergência imprecisa entre Oswald de Andrade e Leon Trotski.

Se a incursão por Trotski pode soar como uma erudição em parte injustificada, que não se afina à curtição encampada pelos filmes da Belair, toda essa suposta seriedade ainda perde maior significado na conformação do discurso para a precariedade brasileira. Ou melhor, para uma discussão que culmina em uma cultura de classes para desclassificados, que se apropria do outro pela devoração despudorada (o embate entre primeiro e terceiro mundos pela ótica da antropofagia, por meio da paródia). Visto pelo prisma da Belair e sua profunda vocação para ironizar a seriedade industrial-internacionalista do Cinema Novo, nunca teria se tratado, afinal, de uma arte livre em uma sociedade dividida em classes, mas o contrário.

Mais do que apontar causas e culpados, o que esses escritos de Bressane permitem indagar é sobre a instabilidade conceitual que atravessa a Belair em sua expressão política. Mergulhada em ambições artisticamente comprometidas, manifesta vontade para abarcar um programa mais abrangente, mas não encontra a mesma facilidade para torná-lo naturalizado em uma pauta que se faz prioritária: pensar o cinema brasileiro pela via estética, com intuito de revelar um outro Brasil, pós-tropicalista. A incorporação de Trotski no repertório da produtora é algo tão singular quanto a presença de Frantz Fanon pela parte de Sganzerla no mesmo período.

Referências

  • BANDEIRA, Moniz. O marxismo e a questão cultural. In: TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 7-18.
  • BRESSANE, Julio. Fotodrama. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
  • CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v 7. p. 9-59.
  • COSTA, Flávio Moreira da. Notas para um cinema underground. Filme Cultura, Rio de Janeiro, a. III, n. 16, p. 28-31, set./out. 1970.
  • COSTA, Flávio Moreira da. A margem em questão. Filme Cultura, Rio de Janeiro, ano IV, n. 18, p. 56-61, jan./fev. 1971.
  • DAHL, Gustavo. Uma reinvenção do cinema? Filme Cultura, Rio de Janeiro, a. IV, n. 18, p. 34-39, jan./fev. 1971.
  • FIGUEIROA, Alexandre. Cinema Novo: a onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas: Papirus, 2004.
  • IGNEZ, Helena; DRUMOND, Mario (org.). Tudo é Brasil: Projeto Rogério Sganzerla: fragmentos da obra literária. Joinville: Letradágua, 2005.
  • NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. v. 6. p. xi-liii.
  • PEREIRA, Miguel. Cinema e Estado: um drama em três atos. In: XAVIER, Ismail; PEREIRA, Miguel; BERNARDET, Jean-Claude (org.). O desafio do cinema: a política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 47-64.
  • RAMOS, Fernão. Cinema marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema Novo/Cinema Marginal, entre curtição e exasperação. In: RAMOS, Fernando Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (org.). Nova história do cinema brasileiro. São Paulo: Ed. SESC, 2018. p. 116-201.
  • SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas. São Paulo: Edusp, 2008.
  • SCHWARZ, Roberto. Prefácio com perguntas. In: OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 11-23.
  • TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
  • WOLF, José. Por um cinema marginal. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, v. LXIV, n. 5, p. 21-26, jun./jul. 1970.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22Nov2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09Jun2023
  • Aceito
    18Out2023
Análise das cartas de Julio Bressane publicadas nos programas da Cinemateca do MAM Rio (1970-1971) (2025)
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Author: Eusebia Nader

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